As crianças e a Covid19

O artigo que se segue foi escrito pela Psicóloga Sandra Alves, mãe de uma criança da sala, em resposta a questões colocadas por outros pais, inquietos com a questão de permitir (ou não) que os seus filhos vejam as notícias na TV.

"Antes do que vos apresento, há duas premissas importantíssimas:
  1. É importante proporcionar um ambiente de abertura e suporte para que a criança possa colocar as suas questões. Não force a criança a falar, se ela não estiver preparada!
  2. Depois, toda esta situação que vivemos implica várias questões: lidar com o vírus em si; gerir o impacto que trouxe às nossas vidas – afastamento da escola/dos amigos/dos familiares, ficar em casa com um ou ambos os progenitores (que eventualmente também deixaram de trabalhar); encarar a incerteza e o futuro, incluindo a possibilidade de muitas coisas não voltarem mais a ser como eram; ouvir falar de temas que habitualmente nos são mais distantes - mortes, emergência (posso dizer-vos que o S. - sendo o mais pequeno do grupo – foi a primeira pergunta que fez: “Mãe: o que é emergência?”), ... Ou seja, estamos a lidar com uma realidade complexa e que, portanto, não se reduz ao que vos apresento abaixo. É apenas uma “pequena” ajuda (espero que sim!!!).

COMO AJUDAR AS CRIANÇAS A ENTENDER E LIDAR 
COM O SURTO COVID-19

1.     Começar por explicar o que é o vírus e como se transmite.
O corona vírus é tão PEQUENO que só o CONSEGUIMOS VER através de um MICROSCÓPIO. Podemos ver uma imagem dele na internet para percebermos que ele tem este nome porque parece uma COROA. Toda a gente sabe que ele existe e fala nele porque ele é CONTAGIOSO e está a ESPALHAR-SE MUITO RAPIDAMENTE pelas pessoas de muitos países, através de pequenas gotículas que libertamos quando falamos, tossimos ou espirramos (e que caem para os objetos e depois passam para as nossas mãos quando lhes tocamos). Algumas pessoas que FICAM DOENTES por causa deste vírus (por exemplo, ficam com dificuldade em respirar, tosse ou febre), PODEM PASSAR A OUTRAS e precisar de tratamento ou de ir para o hospital e por isso é que as pessoas estão preocupadas.

2 - Faça a criança sentir que pode ajudar a combater o vírus
Enquanto os CIENTISTAS estão a tentar descobrir mais coisas sobre o vírus, COMO ELE PÕE AS PESSOAS DOENTES e a tentar ENCONTRAR UMA VACINA para ele, e os profissionais de saúde estão a ajudar as pessoas que já estão doentes, NÓS TAMBÉM PODEMOS AJUDAR. Na verdade, se todos tivermos alguns cuidados, PODEMOS EVITAR QUE MAIS PESSOAS FIQUEM DOENTES.

3 – Explique-lhe como pode proteger-se a si e aos outros:
Para sermos uma espécie de SUPER-HERÓIS e DESTRUIRMOS ESTE VÍRUS precisamos de lavar frequentemente as mãos e muito bem (como os cirurgiões!); tossir e espirrar para o cotovelo; avisar quem nos ajuda a limpar o nariz (ou se já for a criança sozinha) que tem de deitar fora o lenço e lavar novamente as mãos; não andar sempre a levar as mãos à cara e evitar dar beijinhos e abracinhos a outras pessoas que não os nossos familiares mais próximos (porque o vírus entra no nosso corpo pelos olhos, boca e nariz) e… ficar em casa. ASSIM O VÍRUS NÃO ENTRA NO NOSSO CORPO E NÓS NÃO O PASSAMOS A OUTRAS PESSOAS.

4 - Valide os sentimentos de ansiedade, medo, frustração e aborrecimento e encoraje uma atitude positiva:
Ficar em casa, LONGE DA ESCOLA, dos nossos AMIGOS e das ACTIVIDADES QUE GOSTAMOS de fazer é muito chato, podemos sentir-nos tristes, com saudades e aborrecidos. MAS, TAMBÉM PODE SER DIVERTIDO! TEMOS MAIS TEMPO PARA BRINCAR todos juntos em casa, JOGAR JOGOS e fazer coisas que não costumamos fazer. Também podemos continuar a falar e a brincar com alguns familiares e amigos fazendo VIDEOCHAMADAS.

5 - Transmita esperança (realista) e segurança:
NÃO VAMOS FICAR EM CASA PARA SEMPRE, são só alguns dias/semanas. E, de vez em quando, (nos casos em que o isolamento é apenas preventivo), podemos dar um passeio na rua, em sítios com poucas pessoas e ao ar livre, jogar à bola ou fazer uma corrida. VAMOS MANTER AS NOSSAS ROTINAS de levantar, comer e dormir (e estudar, se estivermos em idade escolar). E podes ir pensando em COISAS QUE GOSTAVAS DE FAZER DURANTE O DIA e fazer uma lista, com horários e tudo. Podemos também podemos fazer um diário de bordo para um dia nos lembrarmos desta grande aventura em que FOMOS SUPER-HERÓIS E GANHÁMOS ESTA LUTA CONTRA O VÍRUS. Poderá explicar que há coisas que poderão mudar um pouco depois desta fase como por exemplo a mãe/pai terem que voltar ao trabalho/mudar de trabalho (para o caso daqueles que perdem o emprego) mas que vamos continuar juntos e a protegermo-nos uns aos outros. Esteja preparado para repetir informação e explicar várias vezes. Questionar as mesmas coisas vezes sem conta, pode ser uma forma de a criança procurar uma garantia de que as informações são verídicas. - Não faça promessas irrealistas. As crianças normalmente sabem ou acabam por descobrir se os adultos lhes contam coisas que não correspondem à realidade. As crianças precisam de confiar nos seus adultos de referência!

COMO AJUDAR AS CRIANÇAS A LIDAR COM O STRESS / ANSIEDADE 
DURANTE O SURTO DE COVID-19?

As crianças podem responder ao stresse de maneiras diferentes. Por exemplo, podem pedir mais colo; mostrarem-se mais dependentes, ansiosas, agitadas ou zangadas; isolarem-se, fazerem xixi na cama, ter pesadelos; podem não querer comer; etc. As crianças tendem a personalizar, por isso, é natural que os seus medos e preocupações estejam relacionados com o seu próprio bem-estar, da sua família e amigos.
Responda às reações da criança sendo compreensivo e mostrando apoio, escutando as suas preocupações e dando-lhe uma dose extra de atenção e carinho. Apresente factos sobre o que se passou, explique o que se passa agora e dê-lhe(s) informação clara sobre como reduzir o seu risco de infeção pelo covid-19 com palavras adaptadas à sua idade, garantindo que as compreendem. De uma forma tranquilizadora, ofereça informação sobre o que pode acontecer (por exemplo, se um familiar e/ou a própria criança se começarem a sentir mal, terão de ir para o hospital durante algum tempo e receber ajuda dos médicos, que os vão ajudar a sentir-se melhor). Procure manter as crianças próximas dos seus pais/familiares e evite, na medida do possível, separá-las dos seus cuidadores. Se a separação ocorrer (por exemplo, hospitalização) garanta que existe um contacto regular (por exemplo, via telefone) e mantenha a criança tranquila e segura. As crianças precisam do amor e da atenção dos adultos durante períodos difíceis. Dê-lhes mais tempo e atenção. Lembre-se de escutar o(s) seu(s) filhos, fale com eles com carinho e tranquilize-o(s). Se possível, crie oportunidades para a criança brincar e relaxar. Tanto quanto possível, mantenha as rotinas e os horários habituais ou ajude a criar novas rotinas no novo ambiente, incluindo momentos de aprendizagem/escola e tempo para brincar e relaxar em segurança. Tranquilize e transmita segurança: “podes falar comigo sempre que quiseres”, “estamos seguros em casa”, “para te sentires melhor: vamos respirar devagar, eu faço contigo” ou “vamos fazer uma atividade juntos”. Transmita à criança que existem muitos profissionais que estão a ajudar as pessoas afetadas. É uma boa oportunidade para mostrar às crianças que, quando algo assustador acontece, há pessoas que ajudam.

COMO AJUDAR A LIDAR COM AS IMAGENS DOS TELEJORNAIS? 
E COM AS IMAGENS SOBRE MORTE?

 A palavra “morte” suscita fantasias e constitui-se a partir de muitos significados, o que faz, frequentemente, com que os adultos evitem usá-la na presença de uma criança. Seria uma daquelas palavras proibidas, pois a mera enunciação pode dar-lhe vida! As palavras têm poder, produzem sentido, criam realidades, determinam o pensamento: “Quando fazemos coisas com as palavras, ... damos sentido ao que somos e ao que nos acontece”. E as crianças são “esponjas”: ouvem tudo e estão mais atentas do que o que julgamos ao que acontece.
Até aos cinco anos, a criança percebe a morte como temporária e gradual, podendo ainda considerá-la reversível. Ou seja, acham que a pessoa pode voltar, por exemplo. Não entendem que estar morto e estar vivo é mutuamente exclusivo – não adianta explicar que morrer é deixar de viver! Existe um medo mais consciente de ser abandonada ou separada das figuras de vinculação principais. É a fase do egocentrismo, do pensamento mágico e das causas fantasiosas: podem ver a morte como um castigo ou por se terem portado mal pelo que é muito importante explicar o que vêm na televisão. Como?
  • Perceber o que entende sobre o que está a ver: por vezes, surpreendem-nos com as suas respostas e ajudam-nos bastante na formulação das mesmas! Habitualmente, são os adultos que complicam as respostas... e têm medo de falar sobre “um tema difícil” J
  • Perceber o que quer saber: habitualmente, desejam respostas muito curtas e concretas/objetivas, exatamente aplicadas ao que estão a ver ou ouvir.
  • Responder de forma concreta e curta àquela situação específica (“aquelas pessoas morreram porque estavam doentes”; “um caixão é onde se colocam as pessoas depois de morrerem para ficarem protegidas”, ...)
  • Responder às emoções e sentimentos: ficar preocupado, triste e chorar perante o que se vê não é problema! É “normal”! E não há problema nenhum em validar isso porque afinal perder uma coisa ou uma pessoa de quem se gosta custa muito. Aproveitemos o momento para o dizer e expressar também os nossos próprios sentimentos e emoções para que não vivamos todos num “novelo” e numa encruzilhada de sentimentos difíceis de gerir. É muito mais fácil que façam parte do nosso dia-a-dia. Validar os seus sentimentos pode ser algo do género: “estou a ver que estás preocupado(a)” ou “percebo bem como estás a sentir-te nesta situação”. 
Devemos começar por explicar que a morte é um processo natural que faz parte da vida de todos os seres vivos: pessoas, animais e plantas (de certeza que já viram ou vivenciaram a morte de um animal de estimação, uma planta que morreu, ...) e avançar para as razões pelas quais a morte aconteceu (doença, acidente, ...).
Portanto, privar as crianças de uma explicação sobre o que está a acontecer ou sobre o que estão a ver pode não ser uma boa ideia porque, de uma forma ou de outra, vão perceber que “algo não está bem”. Com isto não estou a dizer que devemos expor sucessivamente a notícias sobre o que está a acontecer. Adequar o que se diz e como se diz é a palavra certa! Estamos assim a ajudar a crescer e a tornarem-se adultos autorregulados!
Deixo um pequeno quadro resumo do que podemos esperar desta fase de desenvolvimento das crianças:


Fatores cognitivos

Bebés 
 e
Crianças até 
aos 3-4 anos
- Permanência da morte não compreendida
Capacidade muito limitada para conceptualizar a palavra “morte”
-  Início da incorporação de “pequenas perdas” nas suas vidas
- Tornam-se conscientes da utilização da palavra “morte” pelos adultos
- Fantasias acerca de reunião com uma pessoa depois da sua morte


Crianças
 5-7 anos
Capacidade para classificar, ordenar e quantificar eventos mas incapaz ainda de estabelecer racionais lógico-dedutivos
Conceitos de “vida” e “morte” estabelecidos (e.g. morte = separação)
- Compreende a condição física da morte (= não respirar, não mexer…)
- Permanência da morte ainda não estabelecida
Estádio do pensamento mágico (e.g. pensamentos/acções podem ser responsáveis pela morte).

Fontes:
Ordem dos Psicólogos Portugueses
DGS
OMS
Armstrong-Dailey, A., Zarbock, S. (2009). Hospice Care for Children. New York: Oxford University Press."

Muito obrigada, em nome de todos os pais e mães da sala fixe e de todos os outros a quem este artigo possa ajudar.

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